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terça-feira, 11 de setembro de 2018

SANTO DAIME - VIAGEM ALÉM DA ALMA

              O Santo Daime tem fundamento no sistema religioso, onde as pessoas fazem uso sacramental de uma bebida enteógena (do inglês: entheogen ou entheogenic). Enteogênico é o estado xamânico ou estase induzido pela ingestão de substâncias alteradoras da consciência. A palavra enteógeno significa literalmente "manifestação interior do divino"; se refere à comunhão religiosa sob efeito de substâncias visionárias ou a ataque de profecia e paixão erótica. 
                 Segundo adeptos, a doutrina do Santo Daime é uma missão espiritual cristã; o daimista, ao participar dos cultos e ingerir a bebida da seita, inicia um processo de auto-conhecimento, cujo objetivo é corrigir defeitos e alcançar a perfeição. 
               A poção mágica do santo Daime foi descoberta pelos índios da Amazônia à centenas de anos; considerada pelos Incas como o "vinho da alma", ela ultrapassou as fronteiras regionais e se tornou a fascinação de pessoas cultas como ecologistas, executivos, empresários e artistas famosos. 
                  Ao redor da bebida ferruginosa, que conduz os iniciados a uma viagem pelo astral e ao interior de si mesmos, fundou-se uma religião com alguns adeptos da idolatria à natureza; sincretizada com elementos do culto católico com as imagens, a cruz, o rosário, música e velas. 
                 Orar às divindades e tomar o Daime pode atravessar uma noite inteira. São ocasiões muito especiais para os seguidores da doutrina, que cantam incansavelmente os hinos, ao som dos maracás, dos violões e outros instrumentos. Na letra simples das canções estão os ensinamentos da religião. Os cânticos, a mais constante referência para o povo do Santo Daime, são ensinados na escola e cantarolados durante o trabalho. 
                Após bailarem por doze horas, os participantes do culto - entre eles o padrinho em farda de gala,  saúdam o amanhecer. Os homens e as mulheres ficam em espaço separados. As garrafas contendo o Daime permanecem no altar, entre os utensílios sagrados, como o rosário e a cruz. Do lado de fora da igreja, o céu estrelado compõe o cenário da floresta e renova a "ligação" dos que tomaram o Daime. Antes de tomarem o chá os fiéis passam por um jejum preparatório; depois vem a concentração. As crianças tem lugar próprio no ritual e entram na fila para ingerir o chá; os hinários ficam sobre o altar, iluminados pelas velas. 
              A preparação da bebida também exige um delicado ritual. Tudo começa com a colheita das folhas e do cipó que existe no interior da floresta amazônica. Às mulheres cabe recolher e limpar as folhas, que são consideradas a porção feminina da bebida; aos homens é destinado o cuidado com o cipó. Depois da colheita da matéria prima para a feitura da "ayhuasca", as mulheres da seita, sentadas em círculo, se dedicam a limpar as folhas. Aos homens , cabe a tarefa de buscar o cipó na floresta, socá-lo em pilões até torná-lo maleável para o cozimento. O cozimento do Daime expele vapores inebriantes, sugerindo um ritual de feitiçaria. Constantemente o "padrinho" - uma espécie de xamã - examina a textura do elixir que será tomado à noite pela comunidade inteira. Tudo acontece como num mutirão astro-ecológico. 
                 Dentro da doutrina do Santo Daime, da união da força do cipó com a luz da folha, nasce o efeito divino do chá. É na casa do "feitio", onde é proibida a entrada de mulheres, que o cipó é raspado e socado em grandes pilões, e depois colocado para cozinhar em caldeirões. Uma vez pronto, o Daime é engarrafado e guardado até o momento do consumo. 
               À noite, depois que todos tomaram a poção, o ritual começa. Em meio às mirações - visões provocadas pelo efeito do ayhuasca, desenvolve-se um inebriante bailado, por vezes, quase imperceptível. Do lado de fora da Igreja, o céu estrelado compõe o cenário da floresta e renova a ligação dos fiéis e seu deus. 
               Os seguidores desta espécie de religião trabalham de forma comunitária. Às seis horas da manhã, homens e mulheres já estão em pé. Eles se revesam nos trabalhos comunitários que garantem a subsistência de todos. Plantio de hortas, colheita de produtos agrícolas, trabalhos de carpintaria, marcenaria e construções, além do ambulatório médico, da creche  e escolinha rural, da preparação de alimentos, etc. Essa rotina de trabalho, onde não circula dinheiro, é diária e só interrompida durante o período de preparação do Santo Daime. Durante todo o dia, a vida da comunidade se agita, com mulheres passando as fardas (roupas especiais usadas nas cerimônias), limpando a igreja e arrumando as crianças para a festa. Estas tomam o Daime desde que nascem e participam das festividades ao lado dos adultos; crescem alegres em contato com a natureza, ostentando uma pureza contagiante, longe dos condicionamentos das grandes cidades. 
                O "ayahuasca" segue um calendário preciso, associado às comemorações dos dias dos santos católicos, ou o batismo e aniversário dos padrinhos. Por isso, o momento de festa é aguardado com ansiedade. Para eles, beber o Daime é encontrar-se com as divindades. Mas as crianças que, quando não estão na cheche ou na escola, estão jogando bola, mergulhando nos rios do local, vivem felizes e indiferentes. Porém, na hora do bailado e da cantoria dos hinos, elas entram na fila, de forma bem comportadas. Dentro do costume da religião, bastante conservadora, durante as cerimônias, homens e mulheres não devem se falar e tem seu espaço claramente dividido no salão. As moças e rapazes solteiros, assim como as crianças, também seus próprios lugares. Uma organização respeitada por todos e que acaba por formar um desenho mágico, que, associado aos lentos e ritmados passos da dança e ao cantar dos hinos, completa a sensação de transe e leveza proporcionada pela ingestão da bebida. 
                  Como todas as religiões, o Santo Daime também têm suas seções de cura. Durante esses trabalhos, quando os doentes bebem o Daime e recebem massagens, o ambiente torna-se mais denso. Não há bailados, só a reza e a cantoria dos hinos. E nem todos participam, só os que julgam estar bem para transmitir suas energias aos doentes. Às vezes, o espiritismo toma conta dos trabalhos (realizados numa casa chamada estrela) e o "padrinho" (xamã) incorpora alguma entidade da floresta, sob os olhares assustados dos demais participantes. Em silêncio, todos observam o "padrinho", que parece falar num idioma indígena. Terminada a seção, tudo volta à rotina. Para os participantes de uma comunidade do Santo Daime tudo faz parte dos difíceis caminhos para se chegar a Deus. 
                  A diversidade de formas no culto ao ayahuasca parece indicar que o homem moderno continua construindo Deus à imagem e semelhança de sua cultura. Enquanto para os índios a bebida continua sendo usada para ajudar na caça, aumentando o pode de percepção, e pelos curandeiros, nas curas espirituais, há centros onde a cultura é associada a rituais de candomblé e umbanda. Até hoje, Mestre Irineu, fundador da religião, é adorado, tanto pelos fiéis quanto pelos que seguem seus sucessores.
                O Santo Daime é uma religião brasileira, fundada no Acre; é uma forma de expressão cultural da floresta. Ela funde fragmentos de crenças e culturas afro-indu-americanas com práticas e hábitos do catolicismo popular.  O sincretismo místico do Santo Daime pode ser contrastado pelo uso de símbolos como o sol, a lua, as estrelas e o pentagrama - herança da Índia e do Egito -, enquanto da África encontram-se influências nas danças cadenciadas dos bailados; da religião católica vem os ingredientes das rezas como a ave-maria, as velas, as imagens, as salve-rainhas e a adoração à cruz; da América pré-colombiana herdou o domínio das plantas no ritual. 
                 O efeito da ayahuasca tem grande variação entre os usuários; varia de acordo com a quantidade, com a própria pessoa, com o ambiente no qual ela estará e, sobretudo, com a motivação. Ao que tudo indica, o uso da bebida ayahuasca, ou Santo Daime, provoca alterações mentais, mas que são canalizadas de forma benéfica dentro do ritual, uma vez que é associada à "harmonia com a natureza e paz entre os homens". As alterações mentais causadas pela ação do Daime sobre o sistema nervoso central podem variar da mudança nas percepções (cores mais fortes, sons mais intensos), até juízos falhos (interpretação diferente da ralidade), ou ainda provocar visões sem objetos. O uso do Daime contribui para a ressocialização dos indivíduos, mas existe o risco de torná-lo um vício, uma dependência - (espécie de muleta); a dependência física não é uma característica do alucinógeno, mas pode-se desenvolver uma necessidade psicológica. 
               O uso da ayahuasca, no Brasil, é fortemente legalizado, mas é vetado o comércio e propaganda do mesmo, que só poderá ser utilizado sem fins lucrativos e em cerimônias religiosas. A bebida chegou a ser proibida em 1985, sendo liberada dois anos depois, e ocorreu uma nova tentativa de proibição nos anos 1990. 
                 O novo xamanismo - ou neo-xamanismo - é uma mistura de rituais dos povos nativos de toda a América; consiste numa mistura de cristianismo, hinduísmo, budismo, ioga, meditação e até psicologia junguiana. O objetivo é conectar-se com o sagrado, com o "grande espírito" e com o próprio "eu superior", o "Self" como era chamado por Jung. O guia para este mundo interior consiste em exercer as múltiplas práticas psicodélicas de meditação e rituais que surgiram pelo mundo. As maneiras de chegar lá são diversas, vão desde bater tambor até cantar hinos e ingerir bebidas feitas das conhecidas como "plantas de poder",  dotadas de propriedades psicoativas. Entre as principais plantas estão o "peyote", dos índios da América do Norte; o "wachuma", dos índiuos andinos, que na língua quéchua significa "ébrio consciente"; a "Jurema" da Amazônia, cujo princípio ativo é o DMT (dimetiltriptamina) ; a mais popular é uma mistura de um cipó e uma folha, que também contém DMT, substância cristalizadora das "mirações" - ou visões. 


Outras informações
                O xamanismo é considerado o berço das religiões que começaram a surgir na moderna espiritualidade do homem que busca uma conexão. 
                Nas práticas de meditação, a aproximação ao divino passa a ser um girar psicológico em círculo em torno de si mesmo para descobrir todos os aspectos individuais; isto equivale a admitir que a psique tem um caráter tão real como o mundo exterior e que a experiência religiosa que, por definição, é a apreciação do mais elevado, também atinge os níveis mais profundos da mente humana. 
                  Os rituais, que se baseiam no princípio da intensificação gradual, com o ponto culminante de catarse ou êxtase, fomentam a solidariedade de vida, e o homem atua como centro responsável pelo rito. 
                 A luta universal entre as forças da luz e da obscuridade, ou do bem e do mal, tem inumeráveis representações na iconografia do mundo inteiro. O grande ciclo da vida, do nascimento, da morte e do novo nascimento, constitui o núcleo de todos os cultos religiosos. O comportamento ritual mostra a aplicação da instituição e da emoção humana aos fenômenos não humanos. 
                   Na igreja cristã primitiva, a dança sagrada era executada em coro superior, e o bispo era quem a dirigia. As idéias de alguns seres celestiais que rodeiam o trono de Deus e o louvam com seus cânticos remonta ao Talmude, no qual diz-se que a dança é a principal função dos anjos. Nos primeiros anos do cristianismo, pensava-se que durante o "Serviço Divino", sobretudo na missa, os anjos estariam presentes no coro e com Cristo participariam na representação do mistério. 
                      Em todos os tempos e lugares, as religiões visam poder, domínio e dinheiro; para isso capturam a psique humana aproveitando-se dos medos que sempre estão presente entre os fiéis. O homem percebe sua fraqueza diante dos acontecimentos do dia-a-dia. Sempre confronta-se com o caos da experiência de sua condição, pois sua vida continua dependente da sua capacidade para estabelecer um vínculo duradouro com a fonte do poder universal. Em razão disso, apesar de todo o avanço científico da humanidade, as religiões e seitas continuam dominando o intelecto dos seus seguidores. 
                   Os seres vivos e o universo, o microcosmo e o macrocosmo obedecem universalmente as mesmas leis. As danças rituais e as bebidas são consideradas, pelos crentes, necessárias para mover o cosmos a seu favor. A situação terrena, que implica a divina, mostra o homem como herói de seu próprio drama vital, mas também como outro simples ator na obra mais ampla que regula a vida e a morte. Penetrar no tempo sagrado equivale a penetrar no eterno e intemporal, que, para eles,  é idêntico ao aqui  e agora. Dessa forma, torna-se "um" diante de toda a criação universal que constitui a marca do divino e significa o paraíso para o homem. 
                  A psique humana, como fonte de todos os fenômenos religiosos e culturais, conserva o conhecimento adquirido pelo homem antes do aparecimento da consciência de si mesmo. Se o crente deseja recuperar a integridade, impõe-se a necessidade de estabelecer o vínculo divino e, com a ajuda da mente consciente, compreender as imagens adormecidas em sua psique.  Com rituais e bebidas alucinógenas liberam-se as tensões emocionais e se engendra nova esperança em relação às necessidades humanas que surgem na vida individual e seus equivalentes sazonais da natureza e do cosmos para garantir a felicidade eterna que se alcançará com a transformação final. O rito é, portanto, uma necessidade metafísica, em que se combinam circunstâncias humanas e acontecimentos cósmicos, embora a profunda seriedade da vida ideal possa ficar mascarada pela imitação e pela representação. 
               Para o crente, o ritual religioso impulsiona-o a ultrapassar os confins da consciência e a saltar sobre o abismo inexistente entre a espontaneidade e a reflexão. Com o objetivo de compreender o mundo e harmonizar-se com ele, apenas necessita de conhecer os mitos, participar nos rituais, decifrar seus símbolos e, através deles, se vincula com seu mundo interior e com o divino. A substância divina imaterial, quando se manifesta nas religiões mais íntimas ou mais inferiores, se recobre com a substância material de todas as esferas, através das quais viajou. A luta entre aspectos luminosos e obscuros, como sintomas duais manifestos da unidade que é a vida, se desenvolve em todos os níveis da criação. 
                 Aquilo que compõe a nossa vida é um misterioso padrão de movimento que não somos capazes de definir nem compreender. De fato, o nosso intelecto não é ferramenta adequada para podermos entender a misteriosa dimensão da existência. 


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