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domingo, 31 de março de 2019

SANTO DAIME - A VIAGEM ALÉM DA ALMA

Escultura Romeo 

                 O Santo Daime é uma religião brasileira, fundada no Acre; é uma forma de expressão cultural da floresta. Ela funde fragmentos de crenças e cultura afro-indu-americanas com praticas e hábitos do catolicismo popular. O sincretismo místico dessa religião pode ser constatado pelo uso de símbolos como o sol, as estrelas e o pentagrama - herança da Índia e do Egito; da África encontra-se influências nas danças cadenciadas dos bailados; da religião católica vem os ingredientes das rezas como a ave-maria, as salve-rainhas e a adoração à cruz; da América pré-colombiana herdou o domínio das plantas no ritual. Portanto, seu fundamento está no sistema religioso, onde as pessoas fazem uso sacramental de uma bebida enteógena (do inglês: entheogem ou entheogenic). Enteogênico é o estado xamânico ou induzido pela ingestão de substâncias alteradoras da consciência. A palavra enteógeno significa literalmente "manifestação interior do divino"; e refere-se à comunhão religiosa sob efeito de substâncias visionárias ou ataque de profecia e paixão erótica. 
               O efeito da ayahuasca tem grande variação entre os usuários; varia de acordo com a quantidade, com a própria pessoa, com o ambiente no qual ela estará e, sobretudo, com a motivação. Ao que tudo indica, o uso da bebida ayahuasca, ou Santo Daime, provoca alterações mentais, mas que são canalizadas de forma benéfica dentro do ritual, uma vez que é associada à "harmonia com a natureza e a paz entre os homens". As alterações mentais causadas pela ação do Daime sobre o sistema nervoso central podem variar da mudança nas percepções (cores mais fortes, sons mais intensos), até juízos falhos (interpretação diferente da realidade), ou ainda provocar visões sem objetos. O uso do Daime contribui para a ressocialização dos indivíduos, mas existe o risco de torná-lo um vício, uma dependência - (espécie de muleta); a dependência física não é uma característica do alucinógeno, mas pode-se desenvolver uma necessidade psicológica. 
               O uso da ayahuasca, no Brasil, é fortemente legalizado, mas é vedado o comércio e propaganda do mesmo, que só poderá ser utilizado sem fins lucrativos e em cerimônias religiosas. A bebida chegou a ser proibida em 1985, sendo liberada dois anos depois, e ocorreu uma nova tentativa de proibição nos anos 1990. 
             Segundo adeptos, a doutrina do Santo Daime é uma missão espiritual cristã; o daimista, ao participar dos cultos e ingerir a bebida da seita, incia um processo de autoconhecimento, cujo objetivo é corrigir defeitos e alcançar a perfeição. 
             A poção mágica do Santo Daime, foi descoberta pelos índios da Amazônia há centenas de anos; considerada pelos Incas como o "vinho da alma", ela ultrapassou as fronteiras regionais e se tornou a fascinação de pessoas cultas como ecologistas, executivos, empresários e artistas famosos. 
              Ao redor da bebida ferruginosa, que conduz os inciados a uma "viagem pelo astral" e ao interior de si mesmos, fundou-se uma religião com alguns adeptos da idolatria à natureza; sincretizada com elementos do culto católico com as imagens, a cruz, o rosário, músicas e velas. 
          Orar às divindades e tomar o Daime pode atravessar uma noite inteira. São ocasiões muito especiais para os seguidores da doutrina, que cantam incansavelmente os hinos, ao som do maracás, dos violões e outros instrumentos. Na letra simples das canções estão os ensinamentos da religião. Os cânticos, a mais constante referência para o povo do Santo Daime, são ensinados na escola e cantarolados durante o trabalho. 
             Após bailarem por doze horas, os participantes do culto (entre eles o padrinho em farda de gala), saúdam o amanhecer. Os homens e as mulheres ficam em espaços separados. As garrafas contendo o Daime permanecem no altar  entre os utensílios sagrados como o rosário  e a cruz. Do lado de fora da igreja, o céu estrelado compõe o cenário da floresta e renova a "ligação" dos que tomaram o Daime. Antes de tomarem o chá os fiéis passam por um jejum preparatório; depois vem a concentração. As crianças têm lugar próprio no ritual e entram na fila para ingerir o chá; os hinários ficam sobre o altar, iluminados pelas velas. 
               A preparação da bebida também exige um delicado ritual. Tudo começa com a colheita das folhas e do cipó que existe no interior da floresta amazônica. Às mulheres cabe recolher e limpar as folhas, que são consideradas a porção feminina da bebida; aos homens é destinado o cuidado com o cipó. Depois da colheita da matéria prima para a feitura da "ayhuasca", as mulheres da seita, sentadas em círculo, se dedicam a limpar as folhas. Aos homens, cabe a tarefa de buscar o cipó na floresta, socá-lo em pilões até torná-lo maleável para o cozimento. O cozimento do Daime expele vapores inebriantes, sugerindo um ritual de feitiçaria. Constantemente o "padrinho" - uma espécie de xamã - examina a textura do elixir que será tomando à noite pela comunidade inteira. Tudo acontece como num mutirão astro-ecológico.
              Dentro da doutrina do Santo Daime, da união da força do cipó com a luz da folha, nasce o efeito do chá. É na casa do "feitio", onde é proibida a entrada de mulheres, que o cipó é raspado e socado em grandes pilões, e depois colocado para cozinhar em caldeirões. Uma vez pronto, o Daime é engarrafado e guardado até o momento do consumo. 
            À noite, depois que todos tomaram a poção, o ritual começa. Em meio a mirações - visões provocadas pelo efeito do ayhuasca, desenvolve-se um inebriante bailado, por vezes, quase imperceptível. Do lado de fora da igreja, o céu estrelado compõe o cenário da floresta e renova a ligação dos fiéis e seu Deus. 
               Os seguidores desta espécie de religião trabalham de forma comunitária. Às seis horas da manhã, homens e mulheres já estão em pé. Eles se revezam no trabalhos comunitários que garantem a subsistência de todos. Plantio de hortas, colheita de produtos agrícolas, trabalhos de carpintaria, marcenaria e construções, além do ambulatório médico, da creche e escolinha rural, da preparação de alimentos, etc.  Essa rotina de trabalho, onde não circula dinheiro, é diária e só interrompida durante o período de preparação do Santo Daime. Durante o dia, a vida da comunidade se agita, com mulheres passando as fardas (roupas especiais usadas nas cerimônias), limpando a igreja e arrumando as crianças para a festa. Essas tomam o Daime desde que nascem e participam das festividades ao lado dos adultos; crescem alegres em contato com a natureza, ostentando uma pureza contagiosa, longe dos condicionamentos das grande cidades. 
             O "ayhuasca" segue um calendário preciso, associado às comemorações dos dias dos santos católicos, ou o batismo e aniversário dos padrinhos. Por isso, o momento de festa é aguardado com ansiedade. Para ele, beber o Daime é encontrar-se com as divindades. Mas as crianças que, quando não estão na creche ou na escola, estão jogando bola, mergulhando nos rios do local, vivem felizes e indiferentes. Porém, na hora do bailado e da cantoria dos hinos, elas entram na fila, de forma bem comportadas. Dentro do costume da religião, bastante conservadora, durante as cerimônias, homens e mulheres não devem se falar e tem seus espaços claramente divididos no salão. As moças e rapazes solteiros, assim como as crianças, também têm seus próprios lugares. Uma organização respeitada por todos e que acaba por formar um desenho mágico, que, associado aos lentos e ritmados passos da dança e ao cantar dos hinos, completa a sensação da transe e leveza proporcionada pela ingestão da bebida. 
             Como todas as religiões, o Santo Daime também tem suas seções de cura. Durante esses trabalhos, quando os doentes bebem o Daime e recebem massagens, o ambiente torna-se mais denso. Não há bailados, só a reza e a cantoria dos hinos. E nem todos participam, só os que julgam estar bem para transmitir suas energias aos doentes. Às vezes, o espiritismo toma conta dos trabalhos (realizados numa casa chamada estrela), e o "padrinho" (xamã) incorpora alguma entidade da floresta, sob os olhares assustados dos demais participantes. Em silêncio, todos observam o "padrinho", que parece falar num idioma indígena. Terminada a seção, tudo volta à rotina. Para os participantes de uma comunidade do Santo Daime tudo fa parte dos difíceis caminhos para se chegar a Deus. 
           A diversidade de forma no culto ao ayhuasca parece indicar que o homem moderno continua construindo Deus à sua imagem e semelhança de sua cultura. Enquanto para os índios a bebida continua sendo usada para ajudar na caça, aumentando o poder de percepção, e pelos curandeiros, nas curas espirituais, há centros onde a cultura é associada a rituais de candomblé e umbanda. Até hoje, Mestre Irineu, fundador da religião, é adorado, tanto pelos fiéis quanto pelos que seguem seus sucessores. 


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